Estado teve 13.679 registros só em 2019. Superintendência planeja ir a escolas para identificar casos
Condições de trabalho condenáveis, com baixa remuneração ou até mesmo sem nenhum rendimento é o retrato da realidade que atingiu 13.679 crianças e adolescentes de 5 a 17 anos que exerciam trabalho infantil doméstico na Bahia. Segundo dados do estudo “O Trabalho Infantil Doméstico no Brasil: análises estatísticas”, publicado na quarta-feira (5) pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPeti), o número de crianças e adolescentes baianas na situação representa 16,4% de todas as ocorrências nacionais.
Em geral, a Bahia só fica atrás de Minas Gerais, que registrou 15.922 casos. O levantamento traz dados de um período entre 2016 e 2019. Se compararmos o ano de 2016 (13.890) com o de 2019, houve uma queda de 1,5%. Mas, há uma alta de 30% comparando 2017 com 2019. A partir de 2017 (10.504), o número cresceu gradualmente; 2018 marcou 11.181 casos e 2019, 13.679 casos. Nascida em região próxima ao município de Teolândia, no sul do estado, a doméstica Romilda Reis, 59 anos, conta que nasceu em família humilde e, com nove irmãos, começou a trabalhar ainda pequena. Quando tinha 8 anos de idade foi levada para a capital por uma família rica que prometeu aos pais de Romilda matriculá-la em uma escola. O que a criança viveu, no entanto, difere da garantia.
“Nada disso era verdade. Quando cheguei, me colocaram para lavar a área de serviço no fundo da casa. Foi muito difícil porque ela [mulher trouxe Romilda para Salvador] se irritava por eu não saber fazer as coisas. Me batia, puxava meu cabelo, esfregava minha cara no chão no local onde não foi feito direito o serviço”, recorda.
Ela conta que sempre voltava para a casa da família, no interior, mas o pai não acreditava nas denúncias e a mandava para a nova casa. Romilda concluiu o segundo grau após completar 40 anos.
“Não tive condições de brincar, estudar. [...] Só recebia comida e lugar para dormir”, diz. Romilda trabalha há 45 anos na mesma casa (Foto: Acervo Pessoal)
Secretária executiva do FNPETI, Katerina Volcov esclarece que o trabalho infantil doméstico acontece quando a quantidade de horas que uma criança fica envolvida em atividades domésticas tensiona condições prejudiciais à saúde e desenvolvimento da criança e adolescente em troca de dinheiro ou direitos básicos, como acesso à alimentação e moradia. A situação se configura tanto dentro do próprio lar quanto em casos como o de Romilda, explorada em casas de “padrinhos” e “madrinhas”.
“É naturalizado na nossa sociedade; a criança cuida dos irmãos, prepara almoço, lava roupa, faz tudo”, exemplifica.
A pesquisa do FNPETI define que em 2016, do total de domicílios com trabalhadoras infantis domésticas, 52,9% eram chefiados por mulheres, percentual que em 2019 foi de 63,5%. Além disso, entre 2016 e 2019, mais de 70% do total dos envolvidos no exercício de trabalho infantil doméstico eram crianças e adolescentes negras. “É uma espécie de naturalização de prática colonial que há séculos perpassa nosso país”, relaciona. A secretária geral do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Estado da Bahia, Milca Martins, 53, relembra que começou a trabalhar com 7 anos, quando foi levada de Cruz das Almas, no Recôncavo, para Salvador, onde foi vítima de abuso sexual, racismo e exploração infantil. “Nessa casa passei horrores, dormia no chão, comia resto de comida. Botavam banquinho para eu subir e lavar os pratos, também limpava o apartamento. Ela [“patroa”] cortou os meus cabelos porque o cabelo das meninas brancas eram lisos e eu, negra, tinha cabelo crespo”, denuncia.
Aos 12 anos, após sofrer abuso sexual do filho do "patrão", Milca fugiu de casa e, com ajuda de desconhecidos, voltou a ter contato com a mãe, em Cruz das Almas (Foto: Acervo Pessoal)
Como consequência do esforço intensivo, exposição ao abuso físico e psicológico e exposição ao fogo, a criança pode desenvolver lesões por movimento repetitivo, alergia por exposição a produtos químicos e risco de acidente. Outra consequência é o abandono da vida escolar que limita a criança no aprendizado e perspectiva de futuro.
Para especialistas, a forma de resolver a situação é através de denúncia e melhor aplicação do Estatuto da Crianças e do Adolescente (ECA) pelo Estado. Políticas educacionais, investimento em creches públicas e ações de geração de renda para jovens são algumas das iniciativas consideradas eficazes pelos especialistas quando se fala em combate ao trabalho infantil doméstico. Superintendência Regional do Trabalho planeja inspeção em escolas de Salvador
Auditor fiscal do trabalho na Superintendência Regional do Trabalho e membro do Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente (Fetipa) da Bahia, Antonio Ferreira ressalta que a Superintendência apresentou à Secretaria Municipal da Educação projeto para identificar casos de trabalho infantil doméstico.
Segundo Ferreira, o propósito é fazer diagnóstico de escolas públicas municipais para identificar crianças que não moram com os pais e, a partir disso, averiguar se o cenário se encaixa em trabalho infantil doméstico. Isso porque o número de denúncias é baixo, tornando inacessível a identificação de casos. O projeto está em análise pela prefeitura.
“A naturalização é tão grande que a gente convive com essa informação de que a criança na casa de outra pessoa trabalhando não desperta sensação de que algo está errado”, salienta.
O auditor fiscal ainda elucida que o trabalho infantil doméstico não necessariamente configura crime, mas pode abrigar comportamentos como de trabalho análogo à escravidão, tornando-se, assim, passível de pena.
Ele orienta que é importante, portanto, que haja denúncia para investigação do contexto. A legislação de acesso ao trabalho estabelece que só é permitido trabalhar a partir dos 16 anos, com exceção dos 14 para aprendizes e ao trabalho de doméstica ou doméstico, válido a partir dos 18 anos. As denúncias podem ser feitas por qualquer cidadão, com direito ao anonimato, por meio do Disque 100.
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